SACERDOTISA CORNELEND

Capítulo 12 - COMPREENDENDO A HISTÓRIA

Capítulo 12

COMPREENDENDO A HISTÓRIA


A história seria inútil se não tivesse alguma relação com as nossas vidas, ou uma lição para nos ensinar sobre a nossa sociedade e sobre nós mesmos como seres humanos... na melhor das hipóteses, nada mais do que uma diversão ociosa. O verdadeiro valor da história, portanto, reside na sua relevância no nosso tempo próprio e lugar. Uma vez que percebemos isto, sabemos porque o estudo da história é absolutamente essencial para a nossa própria sobrevivência e progresso no mundo moderno.

Infelizmente, a história é muitas vezes usada como um mero dispositivo de propaganda e alterada para se adequar aos desejos daqueles que a estão escrever. No caso da religião pré-Cristã, a compreensão pública da nossa história foi seriamente comprometida por estudos hostis e informações falsas. Se quisermos acabar com este dilema, devemos começar por obter uma explicação precisa e imparcial do nosso passado.

Muitos de nós passamos a confiar nos autores de várias obras ou artigos para fazer a pesquisa necessária, e quando encontramos várias referências citadas, tendemos a aceitar as declarações do autor sem questionar. Infelizmente, isto pode ser um erro grave. Embora possa demorar um pouco mais, seria sábio investigar a legitimidade das fontes antes de endossar no trabalho de um autor.

Vamos examinar brevemente o uso das referências de um autor contemporâneo. Na página 97 do livro de 2002, "Attis, entre mito e história", Maria Grazia Lancellotti cita os relatos de Políbio (XXI 6,7) e Lívio (XXXVII 9,9) sobre a aparência física de dois Sacerdotes de Cibele, no ano 190 a. C.

Este encontro ocorreu durante a guerra entre Roma e o rei Selêucida Antíoco III (o Grande). Com uma força Romana de cerca de 6000 homens, sob o comando do almirante da frota Gaius Livius Salinator, começou a assentar a cidade de Sestos (no noroeste da Turquia)... e aqui cito Políbio... "Dois Galli, ou Sacerdotes de Cibele, com imagens e peitorais" (jóias representando ícones religiosos) "saiu da cidade, e suplicou a eles para não recorrerem com medidas extremas contra a cidade."

Isso soa bem, não é? Os Sacerdotes traziam algum tipo de imagem e usavam jóias distintas. No entanto, se alguém quiser pesquisar Políbio, uma das primeiras coisas que aprendemos é que ele nasceu em 203 a. C., na Grécia. Então, ele teria 13 anos de idade no momento desse incidente que ele próprio descreveu. Claramente, ele não foi uma fonte primária... de facto, onde ele pode ter obtido esta informação é nos completamente desconhecido.

E quanto à referência de Lívio? Permitam-me citar... "À medida que as tropas avançavam até aos muros, em primeiro lugar, os Sacerdotes de Cibele inspirados, em trajes solenes, encontraram-nos diante do portão. Diziam isso, por ordem da Mãe dos Deuses, eles, os servos directos da Deusa, vieram rezar para que o comandante Romano poupasse os muros e a cidade. Nenhum deles ficou ferido e, actualmente, todo o Senado e os magistrados saíram para entregar o local."

Bem, isso é certamente um relato muito mais detalhado das coisas... mas novamente, se verificarmos Lívio, descobrimos que ele nasceu em 59 a. C., exactamente 131 anos após este incidente ter acontecido. A sua fonte, para a sua própria admissão, foi Políbio... ainda assim, se compararmos o seu relato com o de Políbio, é muito mais elaborado, incluindo mesmo as palavras exactas proferidas pelos Sacerdotes. Podemos apenas imaginar como ele terá conseguido chegar a esse conhecimento, mais detalhado dos eventos.

O incidente em questão não tem grande significado histórico. Meu ponto ao apresentá-lo serve apenas para mostrar que, embora os historiadores modernos frequentemente citem fontes impressionantes, apenas com um simples trabalho de investigação, poderemos descobrir que eles não são tão impressionantes quanto parecem.

Outro facto crítico que pode surgir quando se investigam fontes, é que muitas delas não são historiadas em absoluto... por exemplo Lucian (Grego; 125-180 d. C.) é frequentemente citado como uma referência séria quando ele foi, de facto, um satírico. Catullus (Romano; 84-54 a. C.) também é frequentemente citado, embora ele fosse um poeta. Uma fonte ainda menos crível, foi Juvenal (Romano; por volta de 100 a. C.), que foi, simultaneamente, satírico e poeta, e com desprezo extremo pelas religiões pagãs... o que garantiu, claro, que o seu trabalho fosse preservado pelos estudiosos Cristãos, quando deliberadamente destruíram o trabalho de tantos outros.

Preconceitos e segundas intenções podem fazer com que fontes antigas apresentem informações de uma maneira distorcida e falsa... isto também é válido para autores modernos, que tiram declarações fora de contexto e citam apenas referências seleccionadas, que sustentam os seus próprios pontos de vista pessoais. Portanto, é aconselhável termos a consciência da posição política e da agenda do autor sempre que abordemos a sua obra.

Frequentemente, a tendência pode ser detectada não pelo que é dito, mas pelo que parece estar obviamente omitido. Por exemplo, no relato de Políbio sobre os Padres Galli, ele não fez menção à coragem que estes possam ter tido quando confrontaram uma força inimiga em massa que avançava sobre eles... nem lhes dá qualquer crédito pelo facto que este acto salvou, provavelmente, a vidas de milhares de pessoas inocentes.

Quando algo parece estar em falta, é uma boa indicação de que talvez seja necessária uma pesquisa. Neste caso, ao pesquisar as histórias de Políbio e examinar todas as referências a Cibele, descobrimos que ele geralmente tinha uma opinião desfavorável acerca da religião. Por causa de alguns incidentes isolados que observou, ele passou a associá-los com orgias e bebedeiras, e aparentemente, acreditava que este tipo de conduta era responsável pelo comportamento imoral. Talvez isso, explica porque os seus relatos sobre os Sacerdotes eram breves e antipáticos.

Outra coisa significativa que descobrimos ao fazer uma pequena pesquisa nas Histórias de Políbio, é que elas foram preservadas exclusivamente nas bibliotecas de Bizâncio e só se tornaram disponíveis para o público por volta de 1400 d. C. Naturalmente, como as bibliotecas de Bizâncio eram controladas e operadas por Cristãos, eles tinham séculos para modificar os documentos da maneira que o desejassem. Podemos apenas especular a influência que pode ter tido em qualquer referência a Cibele, já que é bem conhecido o ódio e a perseguição dos Cristãos para com a religião da Deusa.

Eu não pretendo menosprezar Políbio injustamente... ele é geralmente considerado um historiador razoavelmente decente e objectivo, onde a história Romana está envolvida num sentido amplo... no entanto, no que diz respeito à religião de Cibele, o seu uso como referência é claramente mais problemático. À medida que nos tornamos familiarizados com os historiadores antigos, cujas as obras são frequentemente citadas... Heródoto, Xenofonte, Plutarco, e assim por diante... mais revelador será para nós, distinguir os pontos fortes e fracos de cada autor em relação ao tópico específico a ser tratado.

Além de verificarmos referências e investigarmos a credibilidade de vários autores antigos, às vezes podemos detectar erros num livro ou artigo, simplesmente pela experiência adquirida do assunto, além de incluirmos também o bom senso. Alguns dos problemas típicos que podemos encontrar, incluem-se os erros fundamentais numa premissa básica ou numa conclusão inadequada, extraída de uma análise defeituosa de dados.

O trabalho de Lynn Roller é um excelente exemplo. O seu livro de 1999, Em Busca de Deus a Mãe é baseado na premissa completamente incorrecta de que Cibele é uma divindade Frígia. Como esta afirmação desempenha um papel importante no retrato que o autor fez da história de Cibele, vamos dedicar-lhe alguns minutos a discuti-la.

Roller afirma (página 2) que a Deusa, que mais tarde se tornou Cibele, apareceu pela primeira vez, por volta de 700 a. C., em textos Frígios, como "Matar" (Mãe) ou "Matar Kubileya" (Mãe da montanha). Daqui, ela afirma que a religião espalhou-se para a costa oeste da Turquia, posteriormente os Gregos adoptaram-na, e traduziu Kubileya para Kybebe. Além disso, Roller afirma (página 46) que uma Deusa mais antiga, conhecida como Kubaba, na verdade, não tinha nenhuma relação com a Matar Frígia/Kybebe Grega.

Primeiro, devemos considerar como estas afirmações se encaixam na história geral da região. Durante o império Hitita (cerca 1800-1200 a. C.), uma Deusa-Mãe conhecida como Hebat era bastante popular. Ela tinha sido adoptada pelos Hurritas, um grupo mais antigo que controlava o sudeste da Turquia e o norte da Síria... e acredita-se que Hebat seja descendente de uma divindade Turca ainda mais antiga, conhecida como Kubaba, que foi rastreada até 2500 a. C.

Claramente, os arquétipos da Deusa-Mãe estavam presentes na região muito antes da chegada dos Frígios. A maioria dos especialistas argumenta que eles têm raízes nas culturas neolíticas, por volta de 7000 a. C. A questão, portanto, é se Cibele é descendente directa desses arquétipos antigos e indígenas da Deusa-Mãe, ou se foi apenas uma espécie de criação Frígia posterior. Mais uma vez, um pouco mais de história geral poderá ser útil.

Os Frígios eram uma sociedade guerreira patriarcal que adorava um deus do céu violento conhecido como Sabazios. Eles entraram no centro da Turquia, a partir da área dos Balcãs, após o colapso do império Hitita por volta de 1200 a. C. Relatos da mitologia Frígia daquele período afirmam que houve um conflito interno entre os seguidores de Sabazios e uma Deusa-Mãe indígena. Algumas obras de arte sobreviventes desse período, retratam Sabazios a cavalo a atropelar um touro... um animal que era comummente o símbolo da Deusa-Mãe. Portanto, parece óbvio que os Frígios não eram seguidores da Deusa-Mãe na época em que entraram na Turquia. 

 

Imagem 81 - Cavaleiro Trácio, Museu Nacional da História da Roménia.


Imagem 82 - Mão de bronze usada na adoração a Sabazios, I e II século d. C. As mãos decoradas com símbolos religiosos foram projectadas para ficar em santuários ou, como este, foram anexadas a postes para uso processional. Museu Britânico.


Então, quando foi que os Frígios adoptaram a Deusa-Mãe? Mais uma vez, tudo o que precisamos fazer é consultar um livro de história. Claramente não é coincidência que as referências Frígias a "Matar" apareçam por volta de 700 a. C, pois era precisamente o marco no tempo quando este império foi invadido e conquistado pelo poderoso estado Turco da Lídia (zona ocidental da Turquia), cujo panteão, a Deusa-Mãe desempenhou um papel muito importante.

Obviamente nenhum dos factos históricos fornecem qualquer suporte para a afirmação que Cibele foi uma criação Frígia. De facto, a única base para a afirmação de Roller, é a sua presunção de que o nome Grego 'Kybebe' deriva da palavra 'Kubileya', como encontrado na referência Frígia 'Matar Kubileya'. Além disso, ela supõe de forma irracional que, se não encontrarmos referências Gregas a Kybebe antes de 700 a. C., então esta divindade não deve ter existido antes dessa época.

Vamos primeiro pegar a questão das referências Gregas. Como sabemos, a Guerra de Tróia (por volta de 1200 a. C.) devastou o mundo antigo, grandes cidades foram destruídas, juntamente com as suas bibliotecas, tendo sobrevivido muito poucos estudiosos ou pessoas alfabetizadas. Os 4 séculos seguintes ficaram conhecidos como a Idade das Trevas Grega. Durante este período houve uma completa interrupção da escrita Grega... de facto, marca o fim da escrita Micênica Linear B. Só a partir cerca de 800 a. C., é que os Gregos começaram a escrever novamente, usando um sistema inteiramente novo chamado alfabeto Grego. Praticamente todos os registos Gregos que possuímos hoje foram escritos depois desse marco no tempo, usando o novo alfabeto... e isso explica claramente a falta de quaisquer referências anteriores a 'Kybebe' (ou qualquer outra coisa).

Finalmente, a questão a saber é se o nome Grego "Kybebe" é uma tradução de "Kubaba" ou se deriva da palavra Frígia "Kubileya". No seu livro de 2006, A Mãe dos Deuses, página 77, o renomado estudioso Mark Munn ressalta que a maioria das referências na língua Frígia são apenas para "Matar", com apenas a utilização de dois termos conhecidos do adicional "Kubileya". De facto, o termo 'Kubileya' é meramente um adjectivo que significa 'da montanha', e modifica a palavra 'Matar'... portanto, não é um nome próprio. Por outro lado, tanto 'Kubaba' quanto 'Kybebe' são realmente nomes próprios, e a similaridade do som e da grafia são realmente evidentes.

Quando tudo isto é considerado, é difícil entender como a alegação de Roller, de que Cibele é uma divindade Frígia, datada de 700 a. C., pudesse receber qualquer aceitação académica... mesmo assim, estudiosos e historiadores citam-na e muitos sites educacionais assumem-no como facto. De facto, a erudição deficiente de Roller poluiu os recursos académicos disponíveis on-line de tal forma, que não consegui encontrar uma referência que não definisse Cibele como uma divindade Frígia.

Como vimos, a palavra escrita pode certamente ser problemática de muitas maneiras, contudo a evidência física é geralmente menos ambígua. Embora geralmente o acompanhe com algum tipo de interpretação, o leitor pode ainda ver a evidência directamente e decidir por si próprio o que ela poderá significar. No caso de algo como as figuras de Vénus do Paleolítico, há muita margem para interpretação... no entanto, a maioria dos artefactos das épocas mais recentes são muito mais fáceis de entender.

Alguns dos tipos mais comuns de evidência física que podemos encontrar nas investigações da religião primitiva são as sepulturas, frescos, estatuetas, ruínas de templos e oferendas votivas. Naturalmente a cada um exigirá uma certa quantidade de estudo e experiência para avaliar adequadamente. Por enquanto, vamos apenas seleccionar um tipo particular de evidência física e tentar ver como isso pode-nos ajudar a obter uma imagem mais precisa da espiritualidade do mundo antigo.

Quando examinamos os relatos tendenciosos da religião Romana pré-Cristã, estes frequentemente dizem-nos que a Deusa Cibele era apenas uma das muitas importações estrangeiras sem grande importância. Costuma-se dizer que os ritos eram barulhentos, primitivos, desagradáveis e pouco populares. Às vezes a religião nem é mencionada. É claro que, considerando que os cristãos passaram séculos a fazer o seu melhor para apagar todos os registos favoráveis da nossa existência, este retrato da situação não deveria de ser surpresa... no entanto, sob forma de evidência física, a história conta-nos algo muito diferente.

A numismática é um passatempo fascinante. Aqui, preservado na própria cunhagem, podemos contemplar rostos de reis e imperadores há muito desaparecidos, e outras imagens de lugares e coisas exóticas que estimulam a nossa curiosidade e nos fazem desejar saber mais. As moedas pré-Cristãs continham frequentemente uma imagem de uma divindade, as moedas Romanas não foram excepção. Elas foram feitas em grande quantidade que é possível encontrar hoje espécimes de todos os tipos.

Mesmo um estudo superficial das moedas Romanas revela rapidamente um grande número de imagens de Cibele, isso demonstra claramente que ela era uma divindade com alguma importância e popularidade. Ela aparece na cunhagem oficial de imperadores, tal como Nero, Adriano, Autoninus Pio, Commodus, Septímio Severo, Geta e Caracala, bem como nas moedas das imperatrizes Sabina, Faustina, Lucilla e Julia Domna. Além disso, ela também é encontrada nas moedas de pequenos ofícios, comemorações especiais dos vários jogos Romanos, vitórias militares, e na cunhagem de quase todas as províncias Romanas do Oriente Próximo e Médio.

Moedas Romanas típicas com imagens de Cibele: 

 

Imagem 83 - Moeda Turca (em cima) que provavelmente serviu de modelo à da Lídia (em baixo), cerca 150 a. C.

 

Embora os registos escritos possam ter sido relativamente fáceis de alterar ou destruir, as moedas eram muito abundantes e amplamente dispersas para lhe acontecer algo similar. Mesmo agora, após 2000 anos, elas continuam a falar-no de uma divindade que foi amplamente respeitada e na qual as pessoas depositavam a sua confiança. Século após século, os Imperadores iam e vinham, mas a Deusa Cibele permanecia firme, como parte da consciência colectiva de um povo que a via todos os dias, na moeda do reino.

Claramente, o tópico da religião no mundo antigo tem sido muito mal retratado pela maioria dos estudiosos. Mesmo as contribuições seculares dos Sacerdotes e Sacerdotisas têm sido consistentemente negligenciadas. Por exemplo, eles costumavam ser os membros mais alfabetizados da comunidade. Eles mantinham registos não apenas de assuntos espirituais, mas também de história, ciência, comércio e direito. Eles eram os professores da juventude local, os médicos que cuidavam dos doentes, os pioneiros da tecnologia médica, e, os astrónomos que mapeavam o movimento dos planetas e mantinham os calendários. Nenhuma decisão da comunidade poderia ser tomada sem consultá-los, e, eles tinham a última palavra em qualquer disputa social... no entanto, este tipo de coisas é raramente mencionado nos relatos populares da religião antiga.

Hoje, uma nova geração de estudiosos e historiadores está a começar a apresentar-se... homens e mulheres que não serão influenciados pela agenda das autoridades religiosas poderosas, nem se contentarão em perpetuar as suas versões de eventos que só servem a si próprios. Embora isso possa levar tempo, o impacto do seu trabalho será profundo e de longo alcance. A nossa tarefa é encorajar esse renascimento e ajudar abrir a porta para uma antiga forma de espiritualidade que oferece à humanidade o caminho da verdadeira dignidade e paz.


Referências | Créditos